Metamorfose







A vontade de ir até aquela estante me consumia lenta e minuciosamente. O que acontece no caminho até lá me destrói inteiramente. Talvez quando eu contar a você, não entenda, não é um caso para amadores. Mas eu sou esperta, nada do que lá fora acontece me incomoda se eu mesma sou o meu próprio incômodo. É a ação e a reação, a causa e a consequência.
Levantei-me. Mas não fui à estante. 
A minha personalidade forte se rendeu ao caos da sua ausência. Parecíamos perfeitos, felizes em todas as circunstâncias, dependentes um do outro mediante qualquer ocorrência. Mas esses achismos logo destroços viraram. Logo pó se fizeram. 


Nesse dia eu me sinto como se algo me perfurasse e trancasse a minha garganta. Uma sensação intrínseca. E foi exatamente assim que eu acordei nessa manhã de domingo - um dia atípico de inconformidade. Odeio essas manias peculiares. Sentir demais, falar demais, ouvir demais, me importar demais. 
Quando ele fechou a porta e saiu eu me mantive controlada, era necessário a sua ida, bem como era precisa e esperada a sua volta - o que não significa que ela tenha acontecido. Era estranho como ele vinha se comportando nos últimos meses, disse a vizinha quando estávamos conversando. No começo nada daquilo fazia parte dos nossos dias. Depois de tanto tempo pude sentir o arrependimento acumulado. Era como se algo que antes parecia impossível tivesse acontecido sem o menor esforço. Pensei em um nome para culpar, e assim me sentiria menos aflita - pelo menos por alguns milagrosos minutos. Sonhei acordada com os nossos momentos de amor. Na verdade eu os inventei tão perfeita e cuidadosamente que eram reais. Mas é claro que eram - só não disse para quem. 
Igualmente às lembranças inventei os erros. Eu me contorço de revolta por estar sempre consciente disso e mesmo assim fazer, como quando jogo boliche - você gostava de jogar comigo, era a única coisa que fazíamos juntos e eu conseguia te ganhar. Eu amava ainda mais - para variar - porque é incrível como os seus olhos brilhavam quando eu me distraia, mas eu não reparava. Alguns diziam e eu mal tudo interpretava. 
Quando me encontro dispersa manuseio nosso álbum de fotos e rapidamente reinvento cada lembrança. É tão monótono, tudo é, todos os dias. Começo então a me recordar dos meus escritos, ou melhor, declarações de amor e ódio - essas eram tão comuns quanto os nossos beijos matinais - e percebo que nada mudou além do ponteiro do relógio pregado na cabeceira da nossa cama. Na sua vez, os de amor eram tão únicos que se - por acaso - ele publicasse uma matéria sem se identificar, eu saberia que era de sua autoria; já os de ódio eram mais que mentirosos, destruíam tudo o que se passou entre nós, me obrigavam a desconfiar das suas falanças. O pior é o sentimento momentâneo, uma sensação desprezível, de esgotamento. Já não cabe mais a metáfora "um nó na garganta", essa só é aceitável nos momentos constrangedores. Esse é de dor.
Nesse momento eu só queria saber como reagir, mas eu nunca sei. Estou à beira do precipício e permaneço quieta fisicamente, perturbada psicológica e sentimentalmente. É difícil encontrar as palavras certas para as situações erradas. Contrariamente às felizes. Tanto afeto de demonstração. E a dor? E o desespero? Será que está conseguindo me acompanhar?
Eu quero a companhia da solidão até à estante. Eu quero, só por algumas horas, não sentir medo. Eu quero viver intensa e eternamente. Eu quero aproveitar cada segundo dessa dor. Eu quero transformar a lagarta na borboleta. Eu quero que essa companhia seja a minha. E quero estar comigo quando tudo isso acontecer. Eu quero que nem por um segundo eu deseje estar naqueles braços. 
Olho as pessoas lá embaixo e vejo um mundo particular em cada uma delas. Mas não é acolhedor. Eu penso na existência de duas cadeiras e uma mesa entre elas, nada mais físico e amargurante do que ver e não ter, pegar na mão e deixar escorregar - pela simples distração de não estender a outra -; nada mais dolorido do que um "estou aqui" de manhã e um "Adeus" à noite. Se fossemos nós nesse cenário ele diria o quão maravilhosa eu sou. Diria também que eu mereço alguém melhor ao meu lado. Diria que me amou fortemente. E depois de despertar o perdão novamente no meu coração frouxo, deixaria a sala e pediria desculpas, que estava atrasado. 


Na verdade quem está atrasada sou eu. Pego a minha mochila agora e sigo pelo corredor do apartamento. Depois desço os 10 degraus mais sábios existentes e puxo a corrente da bicicleta, destranco com a chave enferrujada o cadeado do meu coração. Em seguida subo até à estação de trem e espero pela próxima tempestade. Mas isso só será possível se a criatividade alheia ser capaz de decifrar esta - enquanto isso eu fico só, aproveitando a dor. O próximo amor espera pela sua própria chegada. Neste ciclo somos casulo. Outros, quem sabe, ainda lagarta.



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